Ilustração Jean Lins (_@jeanlins)
Ricardo não aguentava mais sua vida, era sempre a mesma coisa: levantar cedo demais para ser feliz, trabalhar muito com o que não importa e dormir tarde demais para ser saudável. Na verdade, a vida de Ricardo é igual a vida da maioria das pessoas, mas por algum motivo ele achou que merecia mais do que isso. Por isso Ricardo decidiu fazer algo que fosse mais rápido que uma faculdade e mais simples que aprender sobre investimentos: um pacto com o demônio.
Ele tentou encontrar livros antigos e sobrenaturais, mas não achou nada nos sebos perto de sua casa ,e a Amazon não estava com nenhuma boa promoção, então Ricardo pesquisou nos mais obscuros sites sobre como fazer um ritual de invocação - no WikiHow - e treinou como desenhar pentagramas até superar sua péssima coordenação motora.
O rapaz insatisfeito esperou até a meia noite, apagou as luzes, acendeu as velas - os sites não diziam nada sobre velas, mas ele achou que daria um clima legal - e ajoelhado em uma das pontas da estrela satânica mais torta já desenhada, ele disse:
- Eu humildemente te invoco, senhor do submundo!
O quarto de Ricardo tremeu, as velas se apagaram, e do meio do pentagrama, entre a fumaça escura que fedia enxofre e carne humana podre, surgiu uma criatura horrenda de pele vermelha, patas de bode, garras de dragão e asas de morcego. A figura obscena era tão monstruosamente grande que seus enormes chifres quase tocavam o teto da casa. Seu rosto deformado tinha a expressão do mais puro ódio e suas presas pareciam lâminas cujo único propósito era matar. Seu corpo fumegava como brasa, e sua presença abominável exalava morte, horror, desespero e total ausência de esperança… Mas o cavanhaque era bonito.
Ricardo estava incrédulo, não só pelo ritual ter dado certo, mas também em como foi fácil - sem exageros, o pentagrama realmente estava muito torto.
- Quem ousa perturbar meu descanso? - disse o demônio encarando fixamente Ricardo.
O medo que Ricardo sentia era enorme, mas não era maior que seu orgulho por finalmente ter acertado alguma coisa que fez sozinho, tirando miojo.
- Peço perdão, meu senhor - disse Ricardo tentando não tremer - eu quero lhe oferecer um pacto.
A criatura infernal olhou com interesse para aquele pequeno humano à sua frente. Ricardo continuou:
- Quero ser rico, poderoso e um homem de sucesso. E em troca te ofereço a minha alma.
- Hum… E o que mais? Tô ouvindo - disse o demônio.
O demônio continuou a encará-lo, e o clima de horror fantástico deu espaço para um constrangimento típico de quando um chefe é passivo agressivo com um funcionário - e esse sentimento Ricardo entendia bem.
- Como assim? Só a minha alma não é o suficiente? - disse Ricardo, confuso.
- Não mesmo - disse o diabo -, eu tô cheio de alma. Eu poderia fechar o inferno hoje e viver tranquilo só com as almas que eu consegui na época da inquisição.
O diabo explicou que o ditado “uma vida não tem preço” não é mais uma realidade, porque depois de tantos empresários medíocres e cantores sem talento o inferno teve que subir a régua e ser mais criterioso em relação a aquisição de novas almas.
- Então é isso? Não tem jeito? - disse Ricardo, desanimado.
- Vou ver o que eu posso fazer por você… - disse a criatura de pele vermelha enquanto puxava um fichário de um portal e o lia com muita atenção. O fichário nas mãos monstruosas era uma tabela de almas, com todas as opções possíveis para uma boa negociação, sem prejuízos.
- O que você acha da sua alma em troca de uma loja de açaí? - propôs o tinhoso.
- Uma rede de lojas?
- Não, uma loja só.
Imagine o quão frustrante é pesquisar em vários sites, assistir vídeos tutoriais de crianças de doze anos ao som de Linkin Park, comprar velas, tentar desenhar um pentagrama minimamente reto para invocar uma criatura milenar do submundo que te oferece pela sua alma apenas uma loja de açaí? A última vez que Ricardo ficou tão decepcionado foi quando viu o saldo de sua conta bancária no dia anterior.
- Não tem nada melhor? Algo como ser dono multinacional, bilionário e tal.
- Aí não tem como, Ricardo.
- Por quê?
- Você é gerente da Renner.
Longe de ser elitista, era mais uma questão prática. O diabo teria que mexer muitos pauzinhos e cobrar favores demais para conseguir justificar um gerente da Renner, da noite para o dia, virar dono da Apple. Se Ricardo pelo menos fosse filho de político seria mais fácil.
- Então esquece esse negócio de multinacional - disse Ricardo - só me faz ser famoso.
- Você canta? Dança? Sabe emitir opiniões rasas sobre assuntos polêmicos?
- Isso não vem no pacote?
Nesse caso, o diabo só se propunha a fazer a divulgação, arranjar participações em programas de auditório e realitys, mas manter e cativar o público era total responsabilidade do ex-dono da alma. No caso dos cantores, o diabo até ajudava a compor uma música ou duas, o que na maioria das vezes rendia um hit no carnaval ou uma dancinha para o Tik Tok, mas não passava disso.
- E se o senhor me ajudasse a inventar alguma coisa?
Isso também não daria certo. Até pouco tempo atrás Ricardo achava que
Bhaskara era um país escandinavo.
Ricardo tentou de tudo, propôs até dar seu Monza 96 quitado junto com a alma, mas o diabo era irredutível, não dava para fugir da tabela - e ele preferia carros mais antigos.
Hoje em dia Ricardo continua com sua mesma vida e mesma rotina, a única diferença é que ele dorme ainda mais tarde jogando seu videogame de última geração, afinal, é bem mais divertido e menos trabalhoso do que cuidar de uma loja de açaí.